Sejam bem-viados a esta crítica, análise, opinião, chame do que quiser. Em tempos de premiações – Oscars, Grammys, Globos de Ouro e afins –, ‘Sebastião’, peça do Ateliê 23, não merece nada menos que o POTY (Play of the Year, literalmente a Peça do Ano).
‘Sebastião’ te engana logo na recepção. Personagens boêmias e caricatas interagem com o público, oferecem leituras de tarô, brindes com cerveja barata e até dança improvisada sob os ajustes finais de luz e som. A atmosfera convida ao relaxamento, um prelúdio de festa. No palco, letras garrafais que estampam ‘BAR PATRÍCIA’ definem que aquilo vai ser duas horas de baderna e viadagem.
E o Ateliê 23 é mestre nessa arte: servir o rega-bofe que amansa a ansiedade e deixa o espectador confortável em estar ali. Tudo é divertido – até a tragédia romana da introdução. ‘Sebastião’ reimagina o mito do santo católico, mas aqui ele não é amante só de Cristo, e sim de Diocleciano, o imperador. E, como todo bom drama, acaba morto pelo amado. Motivo? Amar. Fazer em público o que os ricos e reis fazem escondido.

É justamente ao subir nessa atmosfera de divertimento e tesão que ‘Sebastião’ te derruba. E que queda. Ao retratar a violência e os estigmas que a população LGBTQIAPN+ sofreu e sofre, o espetáculo prende o espectador – não pelo entretenimento, mas pela verdade que expõe. A primeira música, difícil até de chamar de ‘introdutória’ diante de tudo que já aconteceu até ali, surge como um respiro no meio da brutalidade que nos atravessa.
Baby Gay! Você merece um colo!
Baby Gay! Você merece o mundo!
É um convite ao amor, à calmaria e ao Bar Patrícia – que, de fato, existiu. Na Manaus dos anos 70, foi o primeiro refúgio LGBTQIAPN+ durante a ditadura. Ali, o espetáculo encontra seu lar, um espaço onde se desenrolam histórias das pessoas que viveram e vivem sob a pele de quem ama seu igual, misturando memória e ficção.
E é aí que ‘Sebastião’ inquieta. Ouvimos relatos de amor, assassinato, violência e esperança, e o elenco os entrega com tanta intensidade que a dúvida surge: o que é real? São histórias inventadas? São relatos verdadeiros? Pessoais? Coletivos? Você não tem como saber – e é exatamente isso que torna tudo ainda mais poderoso.

Essa dúvida é intencional – um reflexo do estacionamento evolutivo da nossa sociedade. Ao mesmo tempo que avançamos, parecemos não sair do lugar. As histórias são atemporais, e é isso que as torna tão inquietantes. É perfeitamente crível que um grupo de policiais tenha invadido um bar nos anos 70 e assassinado André – um jovem gentil, que apenas queria viver seu amor ao lado do namorado. Mas eu também acreditaria nessa história se ela tivesse acontecido na semana passada.
E é com essa morte [spoiler] que minha personagem favorita dá o tom para o restante da obra. Chica – a ‘Mother’ do Bar Patrícia, uma maricona azeda que ama suas meninas – se volta ao público em pura revolta. Ela está exausta. Não aguenta mais tanta violência, tanto sangue. Ela quer o fim do fim, quer paz e quer revolução. E, se pudesse, enfrentaria ela mesma os ‘carrascos castrados e lobotomizados’.

A cena do tiroteio é precedida por um talk show conduzido por outra personagem fenomenal. É interativo – você ri, se diverte, se entrega. E então, desaba de novo. Isso se repete ao longo de toda a peça. ‘Sebastião’ é um espetáculo sinuoso, jogando o espectador para cima e para baixo em questão de segundos. O drama, a temperança, a sinceridade crua das histórias contadas – tudo isso machuca.
É a metáfora perfeita para a vida de jovens gays, lésbicas, trans e não-binários em Manaus, no Amazonas, no Brasil e no mundo. Uma montanha-russa de emoções, onde buscamos significado e nos cercamos de momentos de alegria, nos distraindo – nos forçando a nos distrair – do fato que a qualquer momento podemos sofrer um ataque que pode acabar com nossas vidas.
‘Sebastião’ não tem público-alvo — todos devem assistir. Todos devem ver essa coletânea de amores e tragédias vividas e revividas em cena. Os gays, para se reconhecerem. Os gays de classe média alta, protegidos por seus privilégios, para sentirem empatia pelos seus iguais — algo cada vez mais urgente dentro da própria comunidade. Pais, mães, tios. E os cis-héteros, para ao menos vislumbrarem uma realidade que nunca poderão compreender por completo.
É a complexidade da existência. É o impacto da resistência. Sua mensagem final é bela e me atingiu em um lugar profundo — mas essa, eu deixo para você sentir por si mesmo. A peça retorna ao Teatro Gebes Medeiros no dia 14 de fevereiro e, em seguida, poderá ser vista no Festival de Curitiba, o maior evento de artes cênicas da América Latina.
E ‘Sebastião’ é, acima de tudo, uma afronta. Sua própria existência já é um ato de resistência. Em um mundo onde a homofobia e a transfobia se normalizam cada vez mais nos meios digitais, uma peça que resgata a história e reafirma nossos direitos de forma atemporal se torna uma ameaça à ordem estabelecida. Se a homofobia e a transfobia são estruturais, que derrubem o prédio e reconstruam tudo do zero.
Ateliê 23
Com 10 anos de estrada e sediado no Centro de Manaus desde março de 2015, Ateliê 23 tem um repertório de 30 espetáculos de teatro e dança, cinco shows musicais autorais e quatro obras audiovisuais entre curtas-metragens e videoclipes. Entre suas obras estão “Cabaré Chinelo”, indicado ao Prêmio Shell 2023, vencedor de dois prêmios Cenym e três Prêmios Jurupari, no Festival de Teatro da Amazônia, e “Helena”, selecionado para a mostra a_ponte: cena do teatro universitário do Itaú Cultural e indicado ao Prêmio Brasil Musical.
‘Sebastião’ é uma realização do Ateliê 23, com apoio do Governo do Amazonas, por meio da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, Ministério da Cultura, via Fundação Nacional de Artes (Funarte), Itaú Cultural, através do Programa Rumos.